No dia em que José Saramago completaria 100 anos, recuperamos o vídeo já partilhado aqui há cerca de um ano, aquando do início da comemoração do seu centenário. Um autor incontornável da literatura portuguesa e da literatura universal, o "nosso" Nobel da Literatura que vale a pena conhecer melhor.
E, já agora, um excerto de As pequenas memórias, obra selecionada para a fase de escola do Concurso Nacional de Leitura, deste ano, para o ensino secundário:
Contei
noutro lugar como e porquê me chamo Saramago. Que esse Saramago não era um
apelido do lado paterno, mas sim a alcunha por que a família era conhecida na
aldeia. Que indo o meu pai a declarar no Registo Civil da Golegã o nascimento
do seu segundo filho, sucedeu que o funcionário (chamava-se ele Silvino) estava
bêbado (por despeito, disso o acusaria sempre meu pai), e que, sob os efeitos
do álcool e sem que ninguém se tivesse apercebido da onomástica fraude,
decidiu, por sua conta e risco, acrescentar Saramago ao lacónico José de Sousa
que meu pai pretendia que eu fosse. E que, desta maneira, finalmente, graças a
uma intervenção por todas as mostras divina, refiro-me, claro está, a Baco,
deus do vinho e daqueles que se excedem a bebê-lo, não precisei de inventar um
pseudónimo para, futuro havendo, assinar os meus livros. Sorte, grande sorte
minha, foi não ter nascido em qualquer das famílias da Azinhaga que, naquele
tempo e por muitos anos mais, tiveram de arrastar as obscenas alcunhas de
Pichatada, Curroto e Caralhana. Entrei na vida marcado com este apelido de
Saramago sem que a família o suspeitasse, e foi só aos sete anos, quando, para
me matricular na instrução primária, foi necessário apresentar certidão de
nascimento, que a verdade saiu nua do poço burocrático, com grande indignação
de meu pai, a quem, desde que se tinha mudado para Lisboa, a alcunha
desgostava. Mas o pior de tudo foi quando, chamando-se ele unicamente José de
Sousa, como ver se podia nos seus papéis, a Lei, severa, desconfiada, quis
saber por que bulas tinha ele então um filho cujo nome completo era José de
Sousa Saramago. Assim intimado, e para que tudo ficasse no próprio, no são e no
honesto, meu pai não teve outro remédio que proceder a uma nova inscrição do
seu nome, passando a chamar-se, ele também, José de Sousa Saramago. Suponho que
deverá ter sido este o único caso, na história da humanidade, em que foi o
filho a dar o nome ao pai. Não nos serviu de muito, nem a nós nem a ela, porque
meu pai, firme nas suas antipatias, sempre quis e conseguiu que o tratassem
unicamente por Sousa.
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