Estas foram algumas das leituras partilhadas no Encontro de Leitores da Semana da Leitura.
LIVROS
Os livros são parentes diretos dos aviões, dos
tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como
elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam.
Os livros têm olhos para todos os lados. Nem pestanejam de tanta
curiosidade. Podemos pensar que abrir e fechar um livro é obrigá-lo a
pestanejar, mas dentro de um livro nunca se faz escuro. Os livros querem sempre
ver e estão sempre a contar.
Adianta pouco manter os livros de capas fechadas. Eles têm memória
absoluta. Vão saber esperar até que alguém os abra. Até que alguém se encoraje,
esfaime, amadureça, reclame o direito de seguir maior viagem. E vão oferecer
tudo, uma e outra vez, generosos e abundantes. Os livros oferecem o que são, o
que sabem, uma e outra vez, sem se esgotarem, sem se aborrecerem de encontrar
infinitamente pessoas novas. Os livros gostam de pessoas que nunca pegaram
neles, porque têm surpresas para elas…
As pessoas que se tornam leitoras ficam logo mais espertas, até andam
três centímetros mais altas, que é efeito de um orgulho saudável de estarem a
fazer a coisa certa. Ler livros é uma coisa muito certa. E os livros não têm
vertigens. Eles gostam das pessoas baixas e gostam de pessoas que ficam mais
altas.
Depois da leitura de muitos livros pode ficar-se com uma inteligência
admirável e a cabeça acende como se tivesse uma lâmpada dentro. Os leitores
mesmo inteligentes aprendem a ler tudo, até aquilo que não é um livro. Leem
claramente o humor dos outros, a ansiedade, conseguem ler as tempestades e o
silêncio, mesmo que seja um silêncio muito baixinho. Alguns leitores, um dia,
podem aprender a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com
palavras por fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Pessoas que dão
palavras.
Alguns livros obrigam-nos a pôr mãos ao trabalho. Mas sem medo. O
trabalho que temos pela escola dos livros é normalmente um modo de ficarmos
felizes.
Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela
imaginação. Por isso é que os textos são mais do que gigantescos, são absurdos
de um tamanho que nem dá para calcular. Se soubermos entender, crescemos
também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de profundo
esplendor.
Devemos sempre lembrar que ler é esperar por melhor.
in “Bibliotecas”, Contos de cães e maus lobos,
Valter Hugo Mãe, p.143 (adapt., com supressões)
Quando nasci, um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é
desdobrável. Eu sou.
Adélia Prado
AS ASAS CRESCEM DEVAGAR
Quando eu era pequena, a minha maior
alegria era semear coisas. Semeava tudo: caroços de laranja, de nêsperas,
pevides de melão, raízes ínfimas de violetas, pétalas de cravo, olhinhos
amarelos de malmequer. Semeava nos vasos, nos canteiros da escola e, sobretudo,
debaixo de uma nespereira enorme que havia no quintal da minha casa de
infância. As sementes transformavam-se. Primeiro eram folhas tenras, depois,
plantas que cresciam, às vezes trepavam, às vezes… não acontecia nada.
Um dia o meu canário morreu. Logo,
não percebi muito bem o que lhe tinha acontecido. Depois descobri que alguma
coisa diferente, silenciosa, fria e inesperada, interrompia a vida. Então, fui
também semear o canário. Durante dias e dias aguardei, debaixo da nespereira,
que o canário voltasse. Primeiro, seria o bico. Depois, os olhinhos e, depois
ainda, um voo rápido e uma canção.
Maria
Rosa Colaço, in De que são feitos os
sonhos
Assim se Revisita o Coração
Só mal tocando as cordas
Da memória
Consegue o coração ressuscitar
Porque era este lugar
que eu precisava agora
como em deserto
até ao infinito,
e de repente,
uma gravidez imensa,
um cacto verde e limpo
Porque os olhos
conhecem estes sons
de dar à luz o vento
e são-lhe amantes
de tangível luz
Só mal tangendo as cordas
da memória
como estas flores
se tingem de alegria
Porque era neste azul
que eu me queria
como a rocha transpira
e se resolve
em mar
Ana Luísa Amaral
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