17.3.22

Leituras Partilhadas

 Estas foram algumas das leituras partilhadas no Encontro de Leitores da Semana da Leitura. 

  LIVROS

 Os livros são parentes diretos dos aviões, dos tapetes-voadores ou dos pássaros. Os livros são da família das nuvens e, como elas, sabem tornar-se invisíveis enquanto pairam.

     Os livros têm olhos para todos os lados. Nem pestanejam de tanta curiosidade. Podemos pensar que abrir e fechar um livro é obrigá-lo a pestanejar, mas dentro de um livro nunca se faz escuro. Os livros querem sempre ver e estão sempre a contar.

     Adianta pouco manter os livros de capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém os abra. Até que alguém se encoraje, esfaime, amadureça, reclame o direito de seguir maior viagem. E vão oferecer tudo, uma e outra vez, generosos e abundantes. Os livros oferecem o que são, o que sabem, uma e outra vez, sem se esgotarem, sem se aborrecerem de encontrar infinitamente pessoas novas. Os livros gostam de pessoas que nunca pegaram neles, porque têm surpresas para elas…

     As pessoas que se tornam leitoras ficam logo mais espertas, até andam três centímetros mais altas, que é efeito de um orgulho saudável de estarem a fazer a coisa certa. Ler livros é uma coisa muito certa. E os livros não têm vertigens. Eles gostam das pessoas baixas e gostam de pessoas que ficam mais altas. 

     Depois da leitura de muitos livros pode ficar-se com uma inteligência admirável e a cabeça acende como se tivesse uma lâmpada dentro. Os leitores mesmo inteligentes aprendem a ler tudo, até aquilo que não é um livro. Leem claramente o humor dos outros, a ansiedade, conseguem ler as tempestades e o silêncio, mesmo que seja um silêncio muito baixinho. Alguns leitores, um dia, podem aprender a escrever. Aprendem a escrever livros. São como pessoas com palavras por fruto, como as árvores que dão maçãs ou laranjas. Pessoas que dão palavras.

     Alguns livros obrigam-nos a pôr mãos ao trabalho. Mas sem medo. O trabalho que temos pela escola dos livros é normalmente um modo de ficarmos felizes.

     Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. Por isso é que os textos são mais do que gigantescos, são absurdos de um tamanho que nem dá para calcular. Se soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de profundo esplendor.

     Devemos sempre lembrar que ler é esperar por melhor.

                   in “Bibliotecas”, Contos de cães e maus lobos, Valter Hugo Mãe, p.143 (adapt., com supressões)


Quando nasci, um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens
, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

                                    Adélia Prado


AS ASAS CRESCEM DEVAGAR

            Quando eu era pequena, a minha maior alegria era semear coisas. Semeava tudo: caroços de laranja, de nêsperas, pevides de melão, raízes ínfimas de violetas, pétalas de cravo, olhinhos amarelos de malmequer. Semeava nos vasos, nos canteiros da escola e, sobretudo, debaixo de uma nespereira enorme que havia no quintal da minha casa de infância. As sementes transformavam-se. Primeiro eram folhas tenras, depois, plantas que cresciam, às vezes trepavam, às vezes… não acontecia nada.

            Um dia o meu canário morreu. Logo, não percebi muito bem o que lhe tinha acontecido. Depois descobri que alguma coisa diferente, silenciosa, fria e inesperada, interrompia a vida. Então, fui também semear o canário. Durante dias e dias aguardei, debaixo da nespereira, que o canário voltasse. Primeiro, seria o bico. Depois, os olhinhos e, depois ainda, um voo rápido e uma canção.

            Passaram-se muitos anos. Quando olho lá para trás sei que descobri que a vida é um milagre. Semear qualquer coisa que fique, que cresça, que deixe um sinal, mesmo pequenino, deve ser o sentido dos nossos dias. E, em certas horas, ainda acredito que o canário voltará. É talvez uma semente que demora um pouco mais que as outras porque tem asas e as asas crescem devagar. Mas eu sei, tenho a certeza que um dia, de repente, no alto duma árvore qualquer eu avistarei essa ave.

                                               Maria Rosa Colaço, in De que são feitos os sonhos


Assim se Revisita o Coração  

Só mal tocando as cordas 

Da memória 

Consegue o coração ressuscitar 

Porque era este lugar 

que eu precisava agora 

como em deserto 

até ao infinito, 

e de repente, 

uma gravidez imensa, 

um cacto verde e limpo 

 

Porque os olhos 

conhecem estes sons 

de dar à luz o vento 

e são-lhe amantes 

de tangível luz 

 

Só mal tangendo as cordas 

da memória 

como estas flores 

se tingem de alegria 


Porque era neste azul 

que eu me queria 

como a rocha transpira 

e se resolve 

em mar

                     Ana Luísa Amaral


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