Em dia de aniversário deste que escolhemos como Autor do Mês na nossa Biblioteca, partilhamos um texto do autor que também destacamos no passado mês como "Poeta de abril". Boas leituras e...
Nasci em Maio, o mês das rosas, diz-se. Talvez por isso eu
fiz da rosa a minha flor, um símbolo, uma espécie de bandeira para mim mesmo.
E todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente, no dia 12
de Maio, às dez e um quarto da manhã (que foi a hora em que eu nasci), a minha
mãe abria a porta do meu quarto, acordava-me com um beijo e colocava numa jarra
um ramo de rosas vermelhas, sem palavras. Só as suas mãos, compondo as rosas,
oficiavam nesse estranho silêncio cheio de ritos e ternura.
Nesse tempo o Sol nascia exactamente no meu quarto. Eu abria a janela. Em
frente era o largo, a velha árvore do largo dos ciganos. Quando chegava o mês
de Maio, eu abria a janela e ficava bêbado desse cheiro a fogueiras, carroças e
ciganos. E respirava o ar de todas as viagens, da minha janela, capital do
mundo, debruçado sobre o largo onde começavam todos os caminhos.
E tudo estava certo, nesse tempo, ou, pelo menos, nada tinha o sabor do
irremediável. Nem mesmo a morte da minha tia. Por muito tempo ela ficou nos
retratos e no jardim, bordando à sombra das magnólias, andando pela casa nos
pequenos ruídos do dia-a-dia, até que, pouco a pouco, se foi confundindo com as
muitas ausências que vinham sentar-se na cadeira, onde, dantes, minha tia se
sentava.
E eu dormia poisado sobre a eternidade, como se tudo estivesse certo para
sempre, eu dormia com muitos olhos, muitos gestos vigilantes sobre o meu sono.
Por vezes tinha pesadelos, acordava, inquieto, a meio da noite, qualquer coisa
parecia querer despedaçar-se e então exclamava:
- Mãe!
E logo essa voz, tão calma, entrava dentro de mim, mandava embora os fantasmas,
e era de novo o meu quarto, a doce quentura da minha casa no cimo da ternura.
Não havia polícia nesse tempo. Ninguém roubaria a tranquilidade do meu sono,
ninguém viria a meio da noite para me levar, porque bastava eu chamar:
- Mãe!
E logo uma voz, tão calma, mandava embora os fantasmas. E era a paz, nesse
tempo, em que todos os anos, quando chegava o mês de Maio, ou mais exactamente,
o dia 12 de Maio, às dez e um quarto da manhã, a minha mãe abria a porta do meu
quarto e colocava, religiosamente, um ramo de rosas vermelhas sobre a minha
vida, nesse tempo, em que dormir, acordar, nascer, crescer, viver, morrer, eram
um rito no rito das estações.
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Por vezes, a meio da noite, um grito
abalava as traves da minha cabeça, direi mesmo da minha vida, e eu acordava
suado, dolorido, como se um rato (talvez o medo?) me roesse o estômago. E era
inútil chamar. Onde ficara essa voz que dantes vinha repor o sono no seu lugar,
repondo a paz dentro de mim? E as manhãs penduradas no mês de Maio, onde
acordar era uma festa? Onde ficara a ternura? Onde ficara a minha vida?
Em Maio de 1963 eu estava na cadeia. Dormia – como direi? – acordado sobre cada
minuto. Tinha aprendido o irremediável. Alguma coisa, dentro de mim, se
despedaçara para sempre (para sempre? Que quer dizer para sempre?). Era inútil
chamar. Tinha aprendido, fisicamente, a solidão. Embora na cela do lado, alguém,
batendo com os dedos na parede, me dissesse, como se fosse a voz longínqua do
meu povo:
- Coragem!
Eu estava, pela primeira vez, fisicamente só, dentro do meu sono povoado por
esse grito que estalava por vezes as traves da minha cabeça (onde essa voz que
mandava embora os fantasmas?).
E era terrível essa manhã sem manhã, essa realidade branca e gelada, toda feita
de paredes, grades, perguntas, gritos. Mesmo que na cela do lado, alguém,
batendo com os dedos na parede, me dissesse:
- Bom dia!
era terrível acordar nessa estreita paisagem com sete passos de comprimento por
sete de largura, tão hostil, tão dolorosa como as regiões dos pesadelos. Porque
acordar era ter a certeza de que a realidade não desmentiria o pesadelo.
Mesmo que os meus dedos batendo na parede transmitissem notícias dum homem que
podia responder:
- Bom dia!
de cabeça erguida era terrível acordar no mês de Maio, com a certeza de que no
dia 12 a minha mãe não entraria pelo meu quarto, deixando-me na fronte um
beijo, e rosas vermelhas sobre os meus vinte e sete anos.
Talvez seja preciso renunciar à felicidade para conquistar a felicidade. Eu
estava na cadeia em Maio de 1963. Tinha aprendido a solidão. Tinha aprendido
que se pode gritar com todas as nossas forças quando se acorda a meio da noite
com um grito na cabeça e um rato (talvez o medo?), roendo-nos o estômago, que
ninguém, ninguém virá repor a paz dentro de nós. E, então, é a altura de saber
se as traves mestras dum homem resistirão. Pois só a tua voz, amigo, responderá
ao teu apelo torturado na noite. E, nessa hora (a mais solitária das horas), se
conseguires cerrar os dentes, dar um murro na parede, acender um cigarro, se
conseguires vencer esse encontro com a solidão no mais fundo de ti próprio, com
que alegria, com que estranha alegria, na manhã seguinte, tu responderás:
- Bom dia!,
mesmo que seja terrível acordar no mês de Maio, nessa estreita paisagem, gelada
e branca, com sete passos de comprimento por sete de largura.
É certo que se podem escolher outros caminhos. Mas poderia eu ter escolhido
outro caminho? Acaso poderia dormir descansado, onde quer que estivesse,
sabendo que algures, na noite, há homens que batem, há homens que gritam?
Os fantasmas tinham entrado no meu sono, invadiram a minha casa no cimo da
ternura; os fantasmas eram donos do País. E se eles viessem de repente, a meio
da noite, e eu chamasse:
- Mãe!
A voz (tão calma) de minha mãe já nada poderia contra eles. Era um trabalho
para mim, uma tarefa para todos aqueles que não podem suportar a sujeição. Eu nunca
pude suportar a sujeição. Acaso poderia ter escolhido outro caminho?
Por isso, em Maio de 1963, eu estava na cadeia, isto é, de certo modo, eu
estava no meu posto. No dia 12 não acordei com o beijo de minha mãe.
Porém, nessa manhã (não posso dizer ao certo porque não tinha relógio, mas
talvez – quem sabe? -, às dez e um quarto, que foi a hora em que eu nasci), o
carcereiro abriu a porta e entregou-me, já aberta, uma carta de minha mãe. E ao
desdobrar as folhas que vinham dentro do sobrescrito violado, a pétala vermelha
duma rosa vermelha, caiu, como uma lágrima de sangue, no chão da minha cela.
Manuel Alegre, Praça da Canção, 1965